A violência, raízes e atualidade
O Centro Internacional de Investigação e Informação para a Paz, organismo filiado a Organização das Nações Unidas (ONU) vem desenvolvendo estudos sobre a violência no mundo e adotou referenciais metodológicos baseados em convergências apresentadas pelos amplos estudos da violência realizada por diversos pesquisadores. Usar esta classificação da violência, entretanto só nos servirá, aqui, como método didático, pois o mais importante será mostrar as diferentes formas da violência que têm um mesmo núcleo comum, a violência estrutural.
De acordo com relatório apresentado pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), o impacto da violência nos países latino-americanos chega a representar em alguns casos, 25% do PIB (Produto Interno Bruto). Este índice corresponde a aos custos com prevenção e administração da violência direta que, alem do mais, tem um impacto imediato sobre as possibilidades do crescimento econômico. Assim, a Colômbia poderia ter crescido, caso não tivesse que enfrentar a situação de violência, entre 2% e 3% em 2001. (Unidas, 2002)
O contraponto conceitual à violência é o estado de paz, ou ausência de violência, segundo Galtung. Mas como falar em paz em um mundo globalizado? A quem caberia o monopólio da violência sobre os povos? Como falar de ausência de violência quando nações como os EUA, durante os anos 1980, em plena Guerra Fria gastaram cerca de US$ 900 milhões só na manutenção de aparatos militares? O que fazer com cerca de 28 milhões de soldados existentes oficialmente no mundo?
Galtung conceitua a violência entre a realização e as potencialidades presentes no indivíduo, insistindo na hipótese de que a violência e o seu controle devem ser exercidos sobre o indivíduo, levantando a subjetividade como ponto de partida, conforme afirma:
A violência está presente quando os seres humanos são persuadidos de tal modo que suas realizações efetivas, somáticas e mentais ficam abaixo das suas realizações (Unidas, 2002, p. 24)
A simples “pacificação dos espíritos” como sugere a idéia de “cultura de paz” propagada pela Unesco , agência que desenvolve ações para a educação, ciência e cultura ligada à ONU e que afirma que “se quisermos acabar com a guerra devemos matá-la no espírito da pessoas”, conforme citação na seqüência .
La violencia se define como "todo cuanto se encamine a conseguir algo mediante el empleo de una fuerza, a menudo física, que anula la voluntad del otro" (UNESCO,1988, T.IV: 2354);
Esta afirmação reforça o pensamento hegemônico de que as causas da violência são subjetivas. Tal concepção é idealista e menospreza suas raízes que estão na realidade objetiva das sociedades. Em relação ao processo subjetivo onde estão contidas as idéias de guerra, instinto de agressividade - desenvolvido pela psicanálise – e ódio suas premissas invertem a posição e coloca o aparecimento da subjetividade como sendo um fenômeno primário, natural, enquanto que é na realidade objetiva que nascem as contradições materiais que promovem situações objetivas onde a violência é efeito e não causa.
Adotaremos a idéia de violência visível, ou seja, o grau de visibilidade que ela ganha à medida que se torna direta, positiva. Neste caso, a guerra é uma forma direta de violência. Mecanismos de destruição em massa e atos de barbárie marcam este tipo de conflito aberto. A recente invasão dos EUA ao Iraque, e ao Afeganistão são exemplos mais atuais. E ao mesmo tempo demonstram a intenção estadunidense em reivindicar uma espécie de monopólio da violência global, tornando-se assim a polícia do mundo.
A respeito da guerra, Hana Arendt (1906-1975), e que foi vítima desde o nascimento da guerra, afirma que “O desenvolvimento técnico dos implementos da violência, alcançou, agora, o ponto em que nenhum objetivo político poderia, presumivelmente, corresponder ao seu potencial de destruição, ou justificar seu uso efetivo no conflito armado” (Arendt, 1994, p.13),
O Estado moderno, entendido aqui como baseado na propriedade privada e no contrato social sustentado pelas leis que asseguram a ordem natural preservada pela força da lei e da violência estatal tolerada, diferentemente da Santa Inquisição na Idade Média que levou à fogueira os impuros e hereges, mas que figurou num modelo de Sociedade estado[1], onde religião, política e estado eram um coisa única..
Para classificar as variadas formas de expressão da violência na sociedade contemporânea, a qual será utilizada neste trabalho como tentativa de classificar cada forma em um tipo de fenômeno pertencente a um mesmo campo de estudo, levando em consideração o Estado de direito, ou os mecanismos legais; e a saúde pública, ampliada neste estudo para o conceito de saúde coletiva.
Uma leitura sobre o fenômeno da violência no esporte, especialmente o futebol, adotando a teoria do processo civilizador de Norbert Elias que vê no esporte historicamente um instrumento utilizado para promover a pacificação da sociedade capitalista e urbana nascida com a Revolução Industrial na Inglaterra, servindo como formador de comportamentos sociais baseados nas regras – que simula as relações da sociedade ancorada na igualdade de direitos, resignificada do seu espírito radical para atender aos interesses da burguesia na afirmação do sistema capitalista- bem como da violência controlada, ou a excitação permitida em uma sociedade controlada por um Estado que tem como prerrogativa controlar a violência como garantia para preservar os direitos individuais sobre a propriedade privada.
O Estado, que para Maquiavel, não tem mais a função de assegurar a felicidade e a virtude, segundo afirmava Aristóteles. Também não é mais - como para os pensadores da Idade Média - uma preparação dos homens para o Reino de Deus. Para Maquiavel, o Estado passa a ter suas próprias características, faz política, segue sua técnica e suas próprias leis. E é neste modelo de estado que ocorrem as relações sociais. Marx ao fazer uma análise do Estado moderno afirma que
O Estado revela então que só existe sob a forma de dissimulação, porque representa a unidade fictícia de uma multiplicidade. Representa a sociedade, a nação, os interesses gerais dos indivíduos, abstrações intelectuais sem determinações reais. É o Estado de uma sociedade dividida em classes; isto é, ainda que não seja apropriado diretamente pela classe hegemônica na sociedade, sua própria existência introduz uma forma de unidade, de harmonia, de ordem, que dissimula as relações entre as classes no processo de produção.
Situar o papel do Estado é importante neste instante para um maior espectro da análise da violência para que seja refutada a tradição que individualiza o fenômeno simplificando-o somente na idéia da punição, que não será descartada ao longo deste estudo.
A violência no Brasil
Em 1997 o Brasil alcançou a marca de 40.000 homicídios, a desproporção com regiões e países em conflito aberto é gritante[2] –, dos quais 38,8% concentrados nas regiões metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro. Deste total de homicídios, a maior parte das vítimas concentra-se entre jovens do sexo masculino e moradores dos bairros mais pobres. (Turino, pag 105)
No Brasil, como já se assinalou, as Regiões Metropolitanas são as que concentram a maior proporção da mortalidade por violência em todas as causas específicas (homicídios, acidentes e suicídios) e em todas as faixas etárias. É no espaço social que se observam também as maiores proporções de crescimento dos óbitos por causas externas, lideradas, durante a década, por Recife, Salvador e São Paulo, nesta ordem. No Rio de Janeiro, a mortalidade por violência permanece com taxas elevadas durante todos os anos da década de 80, apresentando a particularidade de ter os homicídios como a principal causa específica no conjunto dos óbitos também durante toda a década, passando de 33,4%, em 1980 (em contraposição aos 30,45% dos acidentes), para 45,19%, no final de 1988 (contra 31,21% dos acidentes).
Esta persistente supremacia dos homicídios, no perfil das mortes violentas no Rio de Janeiro, difere do que se observa nos dados para o Brasil, onde, no mesmo ano, os óbitos por violência no trânsito corresponderam a 29,3%; os homicídios, a 24,1%, e as outras violências, a 15,4%. (Minayo, 1994)
Na década de 80, as médias das proporções por causas específicas foram as seguintes:
acidentes de trânsito, 28,3%; homicídios, 22,3%; outras violências, 16,2%; afogamentos/ sufocações, 8,5%; suicídios, 5,3%; quedas, 3%; acidentes por fogo e chamas, 1,7%. (Minayo, 1994)
No Brasil, a violência, como nos outros países latino-americanos e africanos, principalmente tem componentes e raízes históricas baseadas num processo particular de formação do Estado moderno onde a exclusão e a violência foram exercidas de uma maneira brutal ora pelos colonizadores ora pelas classes dominantes locais historicamente em alianças com os interesses estrangeiros dos países centrais. Desde as missões com os jesuítas que vieram às Américas e utilizaram, em nome de Deus todas as formas de violência para civilizar índios selvagens, passando pela escravidão dos povos da África, inferiores conforme justifica as teorias naturalistas hegemônicas, sendo a eugenia a mais disseminada, que justificam e justificaram atrocidades em nome da civilização, em detrimento das civilizações pré-existentes nos outros continentes que não o europeu.
Um parâmetro utilizado para medir o grau de violência é o seu grau de visibilidade, incluídos aqui homicíios, suicídios, acidentes de trânsito, a violência entre grupos marginais, étnicos, religiosos e culturais etc. Esta forma de violência visível é utilizada com freqüência para justificar a existência da violência em si como fenômeno e se espera que a punição seja aplicada como forma de restabelecer a ordem “natural”das coisas. A este tipo de violência aplica-se a lei, entra em cena o Estado de direito para punir os criminosos. Mas o seu contraponto é a violência “invisível”, que tem uma maior presença na superestrutura do Estado e no seu monopólio da violência física, bem como a maneira como está estruturado o sistema político e econômico.
Os estudos e debates sobre a violência têm ganhado relevância cada vez maior na atualidade. Um fenômeno que atrevessou a história da humanidade e veio bater às nossas portas em pleno século 21. É “a banalização do mal”, termo cunhado por Hanna Harendt e apropriado pelo senso comum, principalmente pela sua utilização freqüente na mídia. Vários campos do conhecimento tentam explicar as raízes da violência a partir de referenciais fenomenológicos que o apartam da sociedade, a priori, naturalizando o fenômeno como sendo algo natural da natureza humana. É um velho hábito que remonta aos primórdios da existência o fato de tudo aquilo que não conseguimos dar respostas mais elaboradas dentro da idéia de cientificidade entregamos “nas mãos de Deus”, e tentamos desesperadamente devolver o homem às coisas naturais, à ordem natural das coisas, sem, no entanto, encontrar na maioria das vezes pistas que sustentem tal tentativa que está ancorada na tradição do pensamento idealista-positivista. Entregar-se à natureza das coisas não irá solucionar os problemas socialmente construídos e que, então, só poderão ser solucionados, naturalmente pela própria sociedade dos homens.
Lafargue afirma que o grande legado de Marx para a humanidade foi o de ter expulsado Deus da história, o que possibilitou analisar os problemas sociais a partir da própria construção material da sociedade e dos próprios conflitos gerados dentro da sociedade, adotando critérios objetivos e entendo a vida em sociedade como como detentora de leis e dinâmicas próprias historicamente determinadas..
Marilena Chauí ao analisar a violência sob a ótica rãs relações de poder, percebe o uso banal das palavras para situar a violência contemporânea e sua espetacularização, e mostra algumas formas:
A imagem do mal banalizado é construída a partir de outras imagens expressas em palavras como chacina, massacre, guerra civil tácita. Estas imagens, por sua vez, são referidas a fatos, como o da indistinção entre crime e polícia, ou as idéias, como as de crise ética, fraqueza da sociedade civil, debilidade das instituições políticas. Imagens e idéias elaboradas a partir da “banalização do mal”, essas expressões articulam-se para formar um núcleo definido pela presença visível e inapelável da violência. (Chauí, 2006)
A violência é uma das características que distinguem a sociedade-Estado do Estado-nação industrial. E é justamente. o nível de violência física na Antiguidade que cria a necessidade de um controle mais efetivo por parte no novo modelo de sociedade. Se a violência era sintomática na organização da sociedade grega, o seu grau de monopolização da violência física pela administração burocrática estatal era reduzido.
Para McNeill o fenômeno acompanha a humanidade desde que passamos a viver em sociedades. E ao longo deste tempo três, caminhos serviram para tentar controlar a ameaça da insegurança:
1) Por meio da ação comunitária
2) A forma de governo burocratizado em sociedades mais complexas
3) Com a criação do moderno Estado nação (Anemone, et al., 2002)
O autor fala de um passado evolucionário da vida em pequenas comunidades, onde a solidariedade garantia a segurança e sobrevivência dos grupos. Formado habitualmente por laços consangüíneos, muitas vezes alianças com vizinhos eram necessários contra inimigos territoriais.:
Nosso Passado evolucionário coloca os seres humanos em sintonia com este tipo de solidariedade de grupo pequeno. Ao longo da Pré-História, a sobrevivência humana exigia uma cooperação firme e habitual dentro dos limites de uma comunidade primária e pequena, ao lado da suspeita e do medo, senão hostilidade aberta , em relação a estranhos e forasteiros. (Anemone, et al., 2002)
Engels ao descrever a evolução da sociedade, também cita a importância da vida em grupo e os laços de consanguinidade para a proteção da vida comunitária, e faz rapidamente uma abordagem secundária ao analisar o processo de formação histórica da vida social:
(...) Mas para sair da animalidade, para realizar o maior progresso que a natureza conhece, era necessário mais um elemento: a insuficiente capacidade de defesa do indivíduo isolado pela união de forças e pela ação comum da horda(...) (Engels, 1884)
No Estado-nação industrial o monopólio da violência física é um de seus traços centrais, nele o nível de segurança física é bem superior ao da sociedade-estado, justamente para assegurar a idéia de propriedade individual. E é a burguesia inglesa que luta para assegurar esta prerrogativa durante a disputa com a nobreza e a aristocracia pelo poder político..
[1] A idéia de sociedade estado
[2] Um ano e meio de Intifada, no conflito entre Israel e palestinos, provocou 1.500 mortes em ambos os lados
De acordo com relatório apresentado pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), o impacto da violência nos países latino-americanos chega a representar em alguns casos, 25% do PIB (Produto Interno Bruto). Este índice corresponde a aos custos com prevenção e administração da violência direta que, alem do mais, tem um impacto imediato sobre as possibilidades do crescimento econômico. Assim, a Colômbia poderia ter crescido, caso não tivesse que enfrentar a situação de violência, entre 2% e 3% em 2001. (Unidas, 2002)
O contraponto conceitual à violência é o estado de paz, ou ausência de violência, segundo Galtung. Mas como falar em paz em um mundo globalizado? A quem caberia o monopólio da violência sobre os povos? Como falar de ausência de violência quando nações como os EUA, durante os anos 1980, em plena Guerra Fria gastaram cerca de US$ 900 milhões só na manutenção de aparatos militares? O que fazer com cerca de 28 milhões de soldados existentes oficialmente no mundo?
Galtung conceitua a violência entre a realização e as potencialidades presentes no indivíduo, insistindo na hipótese de que a violência e o seu controle devem ser exercidos sobre o indivíduo, levantando a subjetividade como ponto de partida, conforme afirma:
A violência está presente quando os seres humanos são persuadidos de tal modo que suas realizações efetivas, somáticas e mentais ficam abaixo das suas realizações (Unidas, 2002, p. 24)
A simples “pacificação dos espíritos” como sugere a idéia de “cultura de paz” propagada pela Unesco , agência que desenvolve ações para a educação, ciência e cultura ligada à ONU e que afirma que “se quisermos acabar com a guerra devemos matá-la no espírito da pessoas”, conforme citação na seqüência .
La violencia se define como "todo cuanto se encamine a conseguir algo mediante el empleo de una fuerza, a menudo física, que anula la voluntad del otro" (UNESCO,1988, T.IV: 2354);
Esta afirmação reforça o pensamento hegemônico de que as causas da violência são subjetivas. Tal concepção é idealista e menospreza suas raízes que estão na realidade objetiva das sociedades. Em relação ao processo subjetivo onde estão contidas as idéias de guerra, instinto de agressividade - desenvolvido pela psicanálise – e ódio suas premissas invertem a posição e coloca o aparecimento da subjetividade como sendo um fenômeno primário, natural, enquanto que é na realidade objetiva que nascem as contradições materiais que promovem situações objetivas onde a violência é efeito e não causa.
Adotaremos a idéia de violência visível, ou seja, o grau de visibilidade que ela ganha à medida que se torna direta, positiva. Neste caso, a guerra é uma forma direta de violência. Mecanismos de destruição em massa e atos de barbárie marcam este tipo de conflito aberto. A recente invasão dos EUA ao Iraque, e ao Afeganistão são exemplos mais atuais. E ao mesmo tempo demonstram a intenção estadunidense em reivindicar uma espécie de monopólio da violência global, tornando-se assim a polícia do mundo.
A respeito da guerra, Hana Arendt (1906-1975), e que foi vítima desde o nascimento da guerra, afirma que “O desenvolvimento técnico dos implementos da violência, alcançou, agora, o ponto em que nenhum objetivo político poderia, presumivelmente, corresponder ao seu potencial de destruição, ou justificar seu uso efetivo no conflito armado” (Arendt, 1994, p.13),
O Estado moderno, entendido aqui como baseado na propriedade privada e no contrato social sustentado pelas leis que asseguram a ordem natural preservada pela força da lei e da violência estatal tolerada, diferentemente da Santa Inquisição na Idade Média que levou à fogueira os impuros e hereges, mas que figurou num modelo de Sociedade estado[1], onde religião, política e estado eram um coisa única..
Para classificar as variadas formas de expressão da violência na sociedade contemporânea, a qual será utilizada neste trabalho como tentativa de classificar cada forma em um tipo de fenômeno pertencente a um mesmo campo de estudo, levando em consideração o Estado de direito, ou os mecanismos legais; e a saúde pública, ampliada neste estudo para o conceito de saúde coletiva.
Uma leitura sobre o fenômeno da violência no esporte, especialmente o futebol, adotando a teoria do processo civilizador de Norbert Elias que vê no esporte historicamente um instrumento utilizado para promover a pacificação da sociedade capitalista e urbana nascida com a Revolução Industrial na Inglaterra, servindo como formador de comportamentos sociais baseados nas regras – que simula as relações da sociedade ancorada na igualdade de direitos, resignificada do seu espírito radical para atender aos interesses da burguesia na afirmação do sistema capitalista- bem como da violência controlada, ou a excitação permitida em uma sociedade controlada por um Estado que tem como prerrogativa controlar a violência como garantia para preservar os direitos individuais sobre a propriedade privada.
O Estado, que para Maquiavel, não tem mais a função de assegurar a felicidade e a virtude, segundo afirmava Aristóteles. Também não é mais - como para os pensadores da Idade Média - uma preparação dos homens para o Reino de Deus. Para Maquiavel, o Estado passa a ter suas próprias características, faz política, segue sua técnica e suas próprias leis. E é neste modelo de estado que ocorrem as relações sociais. Marx ao fazer uma análise do Estado moderno afirma que
O Estado revela então que só existe sob a forma de dissimulação, porque representa a unidade fictícia de uma multiplicidade. Representa a sociedade, a nação, os interesses gerais dos indivíduos, abstrações intelectuais sem determinações reais. É o Estado de uma sociedade dividida em classes; isto é, ainda que não seja apropriado diretamente pela classe hegemônica na sociedade, sua própria existência introduz uma forma de unidade, de harmonia, de ordem, que dissimula as relações entre as classes no processo de produção.
Situar o papel do Estado é importante neste instante para um maior espectro da análise da violência para que seja refutada a tradição que individualiza o fenômeno simplificando-o somente na idéia da punição, que não será descartada ao longo deste estudo.
A violência no Brasil
Em 1997 o Brasil alcançou a marca de 40.000 homicídios, a desproporção com regiões e países em conflito aberto é gritante[2] –, dos quais 38,8% concentrados nas regiões metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro. Deste total de homicídios, a maior parte das vítimas concentra-se entre jovens do sexo masculino e moradores dos bairros mais pobres. (Turino, pag 105)
No Brasil, como já se assinalou, as Regiões Metropolitanas são as que concentram a maior proporção da mortalidade por violência em todas as causas específicas (homicídios, acidentes e suicídios) e em todas as faixas etárias. É no espaço social que se observam também as maiores proporções de crescimento dos óbitos por causas externas, lideradas, durante a década, por Recife, Salvador e São Paulo, nesta ordem. No Rio de Janeiro, a mortalidade por violência permanece com taxas elevadas durante todos os anos da década de 80, apresentando a particularidade de ter os homicídios como a principal causa específica no conjunto dos óbitos também durante toda a década, passando de 33,4%, em 1980 (em contraposição aos 30,45% dos acidentes), para 45,19%, no final de 1988 (contra 31,21% dos acidentes).
Esta persistente supremacia dos homicídios, no perfil das mortes violentas no Rio de Janeiro, difere do que se observa nos dados para o Brasil, onde, no mesmo ano, os óbitos por violência no trânsito corresponderam a 29,3%; os homicídios, a 24,1%, e as outras violências, a 15,4%. (Minayo, 1994)
Na década de 80, as médias das proporções por causas específicas foram as seguintes:
acidentes de trânsito, 28,3%; homicídios, 22,3%; outras violências, 16,2%; afogamentos/ sufocações, 8,5%; suicídios, 5,3%; quedas, 3%; acidentes por fogo e chamas, 1,7%. (Minayo, 1994)
No Brasil, a violência, como nos outros países latino-americanos e africanos, principalmente tem componentes e raízes históricas baseadas num processo particular de formação do Estado moderno onde a exclusão e a violência foram exercidas de uma maneira brutal ora pelos colonizadores ora pelas classes dominantes locais historicamente em alianças com os interesses estrangeiros dos países centrais. Desde as missões com os jesuítas que vieram às Américas e utilizaram, em nome de Deus todas as formas de violência para civilizar índios selvagens, passando pela escravidão dos povos da África, inferiores conforme justifica as teorias naturalistas hegemônicas, sendo a eugenia a mais disseminada, que justificam e justificaram atrocidades em nome da civilização, em detrimento das civilizações pré-existentes nos outros continentes que não o europeu.
Um parâmetro utilizado para medir o grau de violência é o seu grau de visibilidade, incluídos aqui homicíios, suicídios, acidentes de trânsito, a violência entre grupos marginais, étnicos, religiosos e culturais etc. Esta forma de violência visível é utilizada com freqüência para justificar a existência da violência em si como fenômeno e se espera que a punição seja aplicada como forma de restabelecer a ordem “natural”das coisas. A este tipo de violência aplica-se a lei, entra em cena o Estado de direito para punir os criminosos. Mas o seu contraponto é a violência “invisível”, que tem uma maior presença na superestrutura do Estado e no seu monopólio da violência física, bem como a maneira como está estruturado o sistema político e econômico.
Os estudos e debates sobre a violência têm ganhado relevância cada vez maior na atualidade. Um fenômeno que atrevessou a história da humanidade e veio bater às nossas portas em pleno século 21. É “a banalização do mal”, termo cunhado por Hanna Harendt e apropriado pelo senso comum, principalmente pela sua utilização freqüente na mídia. Vários campos do conhecimento tentam explicar as raízes da violência a partir de referenciais fenomenológicos que o apartam da sociedade, a priori, naturalizando o fenômeno como sendo algo natural da natureza humana. É um velho hábito que remonta aos primórdios da existência o fato de tudo aquilo que não conseguimos dar respostas mais elaboradas dentro da idéia de cientificidade entregamos “nas mãos de Deus”, e tentamos desesperadamente devolver o homem às coisas naturais, à ordem natural das coisas, sem, no entanto, encontrar na maioria das vezes pistas que sustentem tal tentativa que está ancorada na tradição do pensamento idealista-positivista. Entregar-se à natureza das coisas não irá solucionar os problemas socialmente construídos e que, então, só poderão ser solucionados, naturalmente pela própria sociedade dos homens.
Lafargue afirma que o grande legado de Marx para a humanidade foi o de ter expulsado Deus da história, o que possibilitou analisar os problemas sociais a partir da própria construção material da sociedade e dos próprios conflitos gerados dentro da sociedade, adotando critérios objetivos e entendo a vida em sociedade como como detentora de leis e dinâmicas próprias historicamente determinadas..
Marilena Chauí ao analisar a violência sob a ótica rãs relações de poder, percebe o uso banal das palavras para situar a violência contemporânea e sua espetacularização, e mostra algumas formas:
A imagem do mal banalizado é construída a partir de outras imagens expressas em palavras como chacina, massacre, guerra civil tácita. Estas imagens, por sua vez, são referidas a fatos, como o da indistinção entre crime e polícia, ou as idéias, como as de crise ética, fraqueza da sociedade civil, debilidade das instituições políticas. Imagens e idéias elaboradas a partir da “banalização do mal”, essas expressões articulam-se para formar um núcleo definido pela presença visível e inapelável da violência. (Chauí, 2006)
A violência é uma das características que distinguem a sociedade-Estado do Estado-nação industrial. E é justamente. o nível de violência física na Antiguidade que cria a necessidade de um controle mais efetivo por parte no novo modelo de sociedade. Se a violência era sintomática na organização da sociedade grega, o seu grau de monopolização da violência física pela administração burocrática estatal era reduzido.
Para McNeill o fenômeno acompanha a humanidade desde que passamos a viver em sociedades. E ao longo deste tempo três, caminhos serviram para tentar controlar a ameaça da insegurança:
1) Por meio da ação comunitária
2) A forma de governo burocratizado em sociedades mais complexas
3) Com a criação do moderno Estado nação (Anemone, et al., 2002)
O autor fala de um passado evolucionário da vida em pequenas comunidades, onde a solidariedade garantia a segurança e sobrevivência dos grupos. Formado habitualmente por laços consangüíneos, muitas vezes alianças com vizinhos eram necessários contra inimigos territoriais.:
Nosso Passado evolucionário coloca os seres humanos em sintonia com este tipo de solidariedade de grupo pequeno. Ao longo da Pré-História, a sobrevivência humana exigia uma cooperação firme e habitual dentro dos limites de uma comunidade primária e pequena, ao lado da suspeita e do medo, senão hostilidade aberta , em relação a estranhos e forasteiros. (Anemone, et al., 2002)
Engels ao descrever a evolução da sociedade, também cita a importância da vida em grupo e os laços de consanguinidade para a proteção da vida comunitária, e faz rapidamente uma abordagem secundária ao analisar o processo de formação histórica da vida social:
(...) Mas para sair da animalidade, para realizar o maior progresso que a natureza conhece, era necessário mais um elemento: a insuficiente capacidade de defesa do indivíduo isolado pela união de forças e pela ação comum da horda(...) (Engels, 1884)
No Estado-nação industrial o monopólio da violência física é um de seus traços centrais, nele o nível de segurança física é bem superior ao da sociedade-estado, justamente para assegurar a idéia de propriedade individual. E é a burguesia inglesa que luta para assegurar esta prerrogativa durante a disputa com a nobreza e a aristocracia pelo poder político..
[1] A idéia de sociedade estado
[2] Um ano e meio de Intifada, no conflito entre Israel e palestinos, provocou 1.500 mortes em ambos os lados
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