Como nasce o jogo e a paixão

O futebol é um fenômeno que se espalhou por todos os cantos do mundo a partir da segunda metade do século 19 e ao longo do século 20. Nascido na Inglaterra, em meio a Revolução Industrial, foi concebido como instrumento civilizatório e de controle da violência entre os jovens, e também para proporcionar entretenimento e lazer durante as parcas horas livres permitidas aos operários fabris de uma Inglaterra em rápida transição para uma nova organização social e econômica.
A expansão em direção à América Latina da industrialização e das ferrovias, promovida pela Inglaterra, também levou junto nos navios o esporte praticado por onze jogadores de cada lado, algumas regras simples, dois postes fincados a 7,32 centímetros de distância um do outro e um travessão ligando os dois, a uma altura de 2,44 centímetros.
A este retângulo, que com as redes ao fundo formam um caixote, ficando um de um lado e o outro a uns 110 metros de distância. Agregaram-se, ainda, quatro linhas ao campo todo, sendo uma exatamente sob o travessão, unindo ainda mais os dois postes para que não haja dúvidas. A esta dúvida, que muitas vezes ocorre durante um jogo, batizou-se com o nome de goal, ou simplesmente gol, como chamam os brasileiros. Meta, porta, arco, não importa o nome, o gol é uma linguagem universal. Aos poucos este esporte estranho praticado com os pés, o que o tornou ainda mais estranho, foi sendo nacionalizado junto com as indústrias e os trens à vapor.
A simplicidade e a não necessidade de muitos equipamentos ajudaram a popularizar a sua prática por onde chegou. E durante cem anos do século 20 espalhou-se por todos os continentes da Terra, sendo principalmente na rua que ele conquistou a simpatia e a adesão de centenas de milhões de praticantes. Mas depois de atravessar um século, foi expulso das ruas e restrito a espaços cada vez mais escassos, principalmente nas grandes cidades.
As sete regras do futebol, aliás, todas muito simples, une os povos com a linguagem da paz, da tolerância e do fair play, ou seja, do jogo limpo. Jogar futebol é o sonho da maioria dos jovens, hoje não só de meninos, mas também meninas, que a cada ano praticam mais e mais futebol.
Nos Estados Unidos, o futebol é, entre as mulheres, mais importante do que entre os homens. Campeonatos e torneios femininos já são tradicionais em muitos outros países.
E já não é cena incomum ver uma menina ou mais correndo entre meninos, disputando a bola e fazendo gols ou estripulias com o balão mais cobiçado do mundo.
O século 21 está mostrando a todos os povos do mundo, o que já se pôde ver no século passado, que é o poder do futebol para ajudar a dar um pouco de felicidade e alegria às pessoas, principalmente aos jovens e crianças em idade escolar. É no tempo livre de cada criança que se pode construir a solução de conflitos e de diferenças existentes. O jogo é, antes de tudo, uma ação de cooperação e de aprendizagem mútua para a solução de conflitos. E é por isso que ele ajuda a desenvolver a personalidade individual e coletiva de grupos, além de marcar o traço cultural de cada um, garantindo a diversidade de cada sociedade.
Com ele pode-se reocupar as ruas e espaços públicos para o exercício da sociabilização e do jogo.
O futebol no Brasil está profundamente ligado à cultura nacional e à formação do comportamento de sua gente. Sua história é única e começa oficialmente em 1894. Há controvérsias, pois existem registros que datam a prática do futebol em território brasileiro já em 1870, por marinheiros ingleses. Mas convencionou-se atribuir ao estudante Charles Muller, filho de pai inglês e mãe brasileira, a introdução dos primeiros equipamentos e regras utilizadas para se jogar o então football association. Muller viveu vinte anos na Inglaterra, sendo enviado aos 9 anos para estudar no Reino Unido. Ao desembarcar no Porto de Santos fez a célebre declaração ao seu pai: “Meu diploma é de couro, fui diplomado em futebol, pai”. Com dois diplomas de couro debaixo do braço, duas bolas, dois jogos de uniformes e um livro de regras.
Do final do século 19 até o início do século 20 o futebol foi praticado por filhos da burguesia industrial em formação, basicamente composta por funcionários ingleses e suas famílias, além de pessoas ligadas aos donos e chefes das companhias britânicas recém instaladas em terras brasileiras.
Tratado como esporte nobre, teve sua prática iniciada nos então clubes da aristocracia industrial, como o Germânia, o São Paulo Athletic Club e o Mackenzie. Durante os primeiros jogos predominava um clima de glamour e sofisticação. Moças bem trajadas e homens de fino trato portando cartola e fraque tinham lugar assegurado nos então disputados programas da alta sociedade industrial paulistana, que imitava o comportamento nascido na Inglaterra pós-Revolução Industrial.
Já o povo praticava, até os primeiros anos do século 20, predominantemente a capoeira. Desenvolvida nas senzalas onde se concentravam os escravos, a capoeira é uma mistura de dança, luta e jogo. Era ensinada desde muito cedo aos filhos dos escravos nascidos nos cativeiros, durante as horas livres, após a jornada de trabalho. Ao som dos tambores, atabaques e berimbaus embalava os rituais africanos nos territórios, principalmente do Rio de Janeiro, que era a capital federal, além da Bahia, ex-capital.
A capoeira foi muito utilizada pelos negros como defesa durante as fugas das correntes da escravidão e como conseqüência dos capitães-do-mato. Carregada de molejos, balanceios e gingados, a capoeira deu as bases de muitas expressões da cultura brasileira, como o samba, o frevo, o coco, entre outros. E ainda ajudou a moldar o jeito de andar e o gestual típico do povo, somando-se à alegria típica das pessoas.
A partir de 1904, um acontecimento iria inverter a ordem estabelecida de que negros jogavam capoeira e os brancos jogavam futebol. No Brasil desta época, havia uma corrente de pensadores que encabeçou um movimento de assepsia social, conhecido como movimento higienista. Um dos seus principais idealizadores foi Rui Barbosa, que proferiu vários discursos defendendo aspectos do seu pensamento positivista, como o trecho a seguir:

“Os sacrifícios que dependem estas invocações perecem-nos mais que justificados, se é certo que a ginástica, além de ser regime fundamental para a reconstituição de um povo cuja vitalidade o depaupera, e desaparece de dia em dia a olhos vistos, é, ao mesmo tempo, um exercício eminentemente, insuprivelmente da liberdade. Dando a criança uma presença ereta e varonil, passo firme e regular, precisão e rapidez de movimentos, prontidão no obedecer, asseio no vestuário e no corpo, assentamos insensivelmente a base de hábitos morais, relacionados pelo modo mais íntimos com o conforto pessoal e a felicidade da futura família; damos lições práticas de moral talvez mais poderosas do que os preceitos inculcados verbalmente”.(1)

Uma das mais famosas campanhas deste movimento foi a vacinação em massa, desencadeada a partir dos cortiços da cidade do Rio de Janeiro, para combater a varíola.
Só que tal movimento, baseado na força e no autoritarismo de Estado, provocou uma forte resistência da população local, que indefesa, viu na capoeira a única forma de se defender das brutalidades oficiais, que com o uso da força policial aplicava vacinas em mulheres, crianças e adultos. Tal movimento ficou conhecido como a Revolta da Vacina, e é a partir dele que o futebol brasileiro ganha um jeito próprio.
Como conseqüência da Revolta, a capoeira passou a ser atividade marginal e criminosa. O que era lazer lúdico, passou a ser crime. E lentamente o futebol passou a substituir as rodas de capoeira - a ela foi agregada a bola. E rapidamente espalhou-se pelos espaços vazios, já que para jogar futebol não se necessita de muitos acessórios e pode ser jogado descalço, com qualquer coisa que se assemelhe a uma bola, com duas marcações que podem servir como gol e está pronto o jogo.
Enfurecida, a elite industrial decretou que “o futebol deixara de ser esporte nobre e passava a representar à vulgaridade dos mestiços e negros”. Como conseqüência, clubes tradicionais da época, como o São Paulo Atlhetic Club, encerraram as atividades futebolísticas.
E de forma acelerada, o futebol passou a ocupar os cenários e paisagens brasileiras, transformando qualquer espaço disponível em arenas de futebol, sem o luxo de outrora nem tampouco o glamour de um evento da alta sociedade manufatureira.

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