Aos 15 anos aprendendo sobre o medo, o pênalti e a história

Agora não há mais o que fazer. Mais uma vez a angústia dos pênaltis, já que durante os 60 minutos de jogo não houve gols. Já chegamos até aqui, na semifinal, mas os meninos querem o título do torneio. Também pudera, este é o sétimo jogo em menos de uma semana. Só hoje é o segundo jogo. Para quem não é atleta, eles estão superando tudo. Rafael, o zagueiro, vai bater o último pênalti para o time do Mais Esporte/Mastercard. No meio de campo os outros quinze garotos esperam angustiados. Todos estão ajoelhados e abraçados.
Dias antes, Coutinho já havia simulado está situação no campo da Universidade de Manchester. E foi igualzinho. Ele pediu para os garotos reproduzirem a situação real de jogo, caso ele fosse decidido nos pênaltis. Até o Badeco se surpreendeu - e olha que ele é tarimbado, já viveu situações de decisão como jogador e treinador. Foi assim em 1973, quando o árbitro Armando Marques errou a contagem das cobranças e o título de campeão paulista daquele ano foi dividido em dois: um para o Santos, de Pelé, aliás o último de sua carreira, e outro para a Portuguesa, de Badeco, até os dias atuais o último da Lusa.
Até Adilson, preparador físico experiente, parece não acreditar. Em volta do campo dezenas de pessoas estão apreensivas: será que o Rafael consegue fazer o gol, afinal ele joga no melhor time até agora, e que não perdeu nenhum jogo. Foram cinco vitórias. No jogo anterior tiveram que virar um placar adverso e fazer 3 a 2.
Ah, eles merecem! Dezenas de meninas adolescentes inglesas se espremem envoltas na bandeira do Brasil. No universo do futebol parece que todos se sentem brasileiros, ainda mais quando o jogo é bonito. O futebol tem disso. Os olhos atentos ameaçam deixar cair uma lágrima... É a tensão. Mas por que? Afinal são somente dezesseis garotos que foram escolhidos, a menos de um mês desta final, entre uns 40 mil outros jovens iguais a eles que vivem na periferia de São Paulo e participam do Programa Mais Esporte da Prefeitura paulistana. Seus pais e suas histórias de vida são anônimos, como é a vida de milhões de jovens pobres da cidade. E agora, depois de um mês de torneio, em São Paulo e um longo campeonato interno, tudo está nos pés do Rafael. Uma simples cobrança de pênalti!
Antes, o Renam já havia perdido uma cobrança. Também, o menino que veio lá do Parque Veredas se entregou ao devaneio. Durante o jogo ele ia até a beira do campo e ficava parado olhando as menininhas inglesas e procurando a sua namoradinha. Falar inglês, nem pensar, mas para namorar qualquer palavra dita soa como poesia. É a última cobrança, que agonia, Rafael!
No chão, ajoelhado, Dhonatan, o Branco, não quer nem olhar. De olhos fechados ele prefere relembrar seus sete gols no torneio, aliás, belos gols. Com 14 anos ele adora ver o goleiro adversário deitado no chão enquanto olha a bola colada junto à rede dentro do gol. Os goleadores são assim desde muito cedo. Para o Coutinho este prazer é quase sádico, ele que com o Pelé cansou de torturar goleiros adversários do mesmo jeito.
Mas não importa, o Rafael já colocou a bola na marca do cal. São onze metros, mas o que são onze metros diante de quase dez mil quilômetros? Quem diria, o Anderson, que até quinze dias atrás não tinha nem certidão de nascimento agora já pode dizer que conhece a Inglaterra! Lá no Jardim Ibirapuera ele vai ter um montão de histórias para contar, se bem que ele não é de falar muito, meio matuto, aprendeu com a sua mãe a desconfiar das pessoas e das palavras! Talvez se ela tivesse aprendido a ler e a escrever desconfiasse menos, pois não seria tão refém da própria sina. Mas agora o Anderson tem até passaporte, seu primeiro documento depois da certidão de nascimento. Como pode, 15 anos sem existir e agora esta apreensão por causa de um pênalti?
Vamos Rafael, faz o gol e acabe com está angústia, suplica o Bruninho. Seu nome só pode terminar em inho. Afinal, ele é o menorzinho dos dezesseis e só pôde viajar porque o juiz expediu uma autorização, já que o pai dele ninguém sabe por onde anda. Já o Elton nem precisou de juiz, o pai sequer declarou a paternidade em cartório. Bem feito pra ele, pois não pôde experimentar esta sensação de torcer para o filho, como fez o pai do Vitor, o seu Carlos, que ficou paraplégico depois de um assalto. Agora vê no filho a agilidade que lhe foi tirada por uma bala de revólver.
Vai dar tudo certo, proclama o Dr.Alberto; otimista não entra em pânico. Já a Tina, a psicóloga, não consegue esconder os olhos orientais esbugalhados de temor. Vai Rafael, faz o gol para a gente ver. Decisão em pênaltis nunca foi agradável. Na Copa do Mundo de 1986, no México, o Brasil perdeu para a França uma vaga nas semifinais numa disputa em pênaltis. Mas, em 1994, na Copa dos Estados Unidos, o Brasil foi campeão na disputa de pênaltis.
Enfim, agüenta coração, diria o locutor Fiori Giliotti.
Nove dias na cidade de Manchester, dormindo nos dormitórios da OAK House, comendo the traditional english breakfast – ovos, bacon, feijão, salsicha e pão. Aprendendo a ouvir a língua inglesa, conhecendo a cidade que é o berço da industrialização. Treze horas de vôo de São Paulo até lá, e agora tudo está numa cobrança de pênaltis... Não, não é só isso. É simplesmente um jogo, inventado pelos ingleses. Que honra poder, aos 15 anos, jogar na terra dos inventores do esporte mais popular do mundo. Dane-se. Vai Rafael, chuta, não tenha medo, o medo acabou, agora vocês têm uma grande história. Apita o árbitro, correu Rafael, bateu e defendeu o goleiro do Red Wood! Silêncio, aplausos, lágrimas, não importa, nada acabou, foi só mais um jogo de futebol, muito especial, muito diferente para todos. Uma nova história e um novo tempo se abrem a partir deste simples jogo de bola. Tantas coisas em um curto espaço de tempo... Podemos afirmar que estas emoções não têm preço.

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